Restauração

Arroz de Polvo a 5€

Conhecemos o mais do que internacional índice Big Mac. E porque é que não podemos nós, em Portugal, ter o barómetro Arroz de Polvo? Os sinais de retoma financeira podem expressar-se em Arroz de Polvo. São muitas as ofertas gastronómicas atuais que procuram a atração de um maior número de clientes nos restaurantes. Sem grandes contas feitas, as empresas de restauração ganham pouco ou nada nos pratos do dia, embora precisem cada vez mais de sustentabilidade. E os clientes saem paradoxalmente satisfeitos e agradecem.

Todos já tivemos, em algum ponto da vida, a nobreza de escutar alguém a congeminar planos de abrir um restaurante, uma casa de chá, uma tasca regional. Ou um restaurante biológico. Ou um café. Uma pastelaria. Um projeto de vida, quantas vezes romantizado, que nos leva a passar pelo papel de entregar louvores a esse alguém pela capacidade empreendedora no negócio das comidas e bebidas. Por outro lado, quando o nosso hemisfério esquerdo inicia funções, tolda-nos com um acesso de racionalidade: as horas de trabalho, as férias perdidas, as noites sem descansar, as contas acumuladas, o fim do dinheiro que chega sempre antes do mês acabar.

Um dia de cada vez

Viver no fio da navalha, ou viver um dia de cada vez são expressões a que muitos restaurantes e outros negócios de restauração já se habituaram. E não apenas por causa do Covid-19. Não tem de ser assim. Mas, da realidade da Restauração, não minto se partilhar convosco que a minha perceção me leva a dizer que aqueles que vivem no fio da navalha são (quase) sempre microempresas, pouco estruturadas e com poucos recursos ao nível de competências técnicas e de gestão. O que acaba por induzir o tópico de hoje e que pouco abona, muitas vezes, em favor dos súbitos restaurateurs. Porque as empresas com contas feitas comportam-se de forma diferente.

Em suporte do que digo, esta semana, num dos grupos de Facebook destinados a Profissionais da Restauração onde me encontro, alguém partilhava o menu de pratos do dia de um restaurante (uma tasca) em que podíamos encontrar pratos do dia a 3,95€ e menus a 5€ (com couvert, bebida, sobremesa e café). Naturalmente que o espanto era generalizado, sobretudo no que diz respeito à suspeição e aos alarmes que imediatamente estes preços provocam nos profissionais e nos clientes mais informados ou habituados a estas andanças.

Um Arroz de Polvo a 5€

Mas, o feitiço começa aqui, no Arroz de Polvo a 5€. Gracejo frequentemente com os meus alunos, a atirar para a pura ironia e a desejar que estes exemplos não acontecessem de facto, para que não hesitem em entrar num restaurante que vende algo assim como um Arroz de Polvo a 5€, em regra, como prato do dia. Tenho uma explicação para isto: sai mais barato comer num restaurante com contas mal feitas do que preparar o mesmo prato em casa. E aqui está o problema. E aqui residem, aliás, muito dos problemas do tecido económico da restauração portuguesa.

Um negócio com contas (mal feitas)

Olhemos então para este excelso petisco para perceber a dimensão do problema. Um restaurante ganha dinheiro, em regra, a vender comidas e bebidas. E para um cliente poder comer este prato a 5€, alguém não calculou o custo verdadeiro da comida que é servida ao cliente e a margem de contribuição que esse prato tem para o negócio de onde, repito, os restaurantes devem retirar proveitos. Porque enquanto houver dinheiro na caixa, o negócio corre bem. Errado.

Aceita-se que 30% do valor que o cliente paga represente os custos com a comida, ficando o custo do prato (com todos os ingredientes e em projeção teórica) a 1,50€. Impossível. Basta fazer contas. Um quilograma de polvo custa em média 10,99€/kg e perde cerca de 60% do seu peso durante a confeção. E não é justo ser o restaurante a suportar os 60% de custos que teve com o polvo e do qual não vai poder retirar dividendos!

Portanto, o teste do cortador (uma conta simples de soma de desperdícios usada em restauração) obriga-nos a somar aos 10,99€ o valor do desperdício, sendo o novo preço por quilograma de 17,59€. Assim, se forem utilizados 100gr de polvo no prato a este preço já contabilizamos 1,76€ de custos de comida. E ainda não juntámos os restantes ingredientes. Uma dose desta natureza facilmente chega aos 2,50€, representando, portanto, 50% daquilo que o cliente paga. E não adicionámos nestas contas o valor do gás, água, luz, mão de obra (e muitos outros custos que os restaurantes precisam de suportar e que pagam a partir, uma vez mais, das comidas e bebidas que vendem), que o restaurante utiliza para preparar o prato.

Polvo-que-não-é-Polvo

Desperdício não cobrado ou então, o Arroz pode ser de Polvo-que-não-é-Polvo. Para baixar os custos, e é uma opção da qual espero nunca ter confirmação, o polvo pode por vezes ser substituído por pota e isso representa um dos piores truques e ultrajes usados pelos restaurantes (o bacalhau ser trocado por paloco também já é uma manha conhecida). Se no primeiro cenário o desperdício é dado ao cliente, no segundo cenário, e apesar de não ser nada mau gastronomicamente falando, é terrível do ponto de vista da lealdade e franquezas comerciais. Por isso, recomendo que sempre se certifiquem das matérias-primas empregues no prato.

Somos cúmplices do fecho de alguns restaurantes

A asfixia que muitos pequenos negócios sentem, obrigam os seus proprietários a tomar decisões drásticas e muitas vezes associadas aos próprios preços, baixando-os, como já referi, para atrair clientela. O grande problema desta medida, em que os clientes são cúmplices, prende-se com a falta de liquidez sistémica e o efeito bola de neve que as contas mal feitas podem trazer. E porque não fizeram estas contas, muito frequentemente estão a pagar ao cliente para comer. E ficamos depois, claro, com pena porque fecharam.

Com preços desta natureza, podemos começar a questionar-nos como arranjarão estes negócios dinheiro para pagar aos seus fornecedores? E aos seus empregados? Contribuirá o cliente para a continuidade de uma política de baixos salários no setor? Sem dúvida.

A sua responsabilidade social enquanto cliente de um restaurante está nas decisões que toma. Sobretudo quando procura o Arroz de Polvo a 5€ e sabe que invariavelmente é à custa do trabalho humano que consegue pagar estes valores.

Talvez seja mais sensato não ir.

Um buraco na máscara para respirar melhor

E talvez seja mais sensato não ir porque, pelo menos, não contribui para alimentar a bola de neve que referi. É por esta razão que alguns restaurantes com capacidade de gestão e capacidade de inovação chegam à conclusão de que não dá mais.

Impera a sensatez perante os compromissos que têm. Os restaurantes (tal como nenhum negócio deveria ser) não é um passatempo. Serve para gerar e movimentar dinheiro. E se não é rentável, deve fechar. Para bem de todos. Do patrão, do empregado, do fornecedor, do Estado e do próprio cliente. E numa metáfora covidiana, diria que fazer buracos na máscara para respirar melhor só aumenta o risco de infeção.

De bola de neve a avalanche

Julgo que consegui demonstrar-lhe o efeito da falta de planeamento, o efeito da falta de organização de um negócio de restauração e a carência de auxílio que esta área tem. Se pensa que isto acontece no Arroz de Polvo, cometo a ousadia de dizer que 95% dos pratos do dia vendidos nos Restaurantes Portugueses partilham desta incerteza e deste feitiço. E, porventura, praticam também as infidelidades comerciais ou as injustiças laborais a que dão azo.

Multiplique agora os pratos do dia pelos restaurantes que seguem estas práticas. Talvez perceba melhor o problema sistémico em que se encontra a Restauração Portuguesa.

E eu que gosto tanto de Arroz de Polvo.

Óscar Cabral